sábado, 30 de maio de 2020

ida sem regresso...



gastavas os dedos
nas contas do rosário,
e assim nesse entretém,
nesse fadário
cismavas também em teus degredos.
teu espírito tinha outra ralação
espreitavas a rua através da vidraça
só tinhas no coração
a falta de quem abraça.

nas horas sombrias
dos últimos dias
menor lucidez...
a vida esquecida,
dormindo acordada.
a quebrar a surdez
os ais tristes, por nada saberes
desde esse longo dia, dessa noite escura
da despedida e desventura.
teus sonhos entorpecidos
preenchendo os dias que passavam lentos
teus dedos no rosário esquecidos,
a ansiedade mirrando teus pensamentos.
e a lonjura  entontecendo-te
falta de notícias do infinito mar
o amor que foi esquecendo-te
a ti e aos filhos, que não paravam de chorar.

minha avó como me lembro de ti!
triste, toda a vida assim te vi.
vestida de negro sem sorrir
saudade dum marido que não voltou
tuas mãos rezando, sabe Deus a pedir
a orar ou a gemer por uma luz que te cegou.

dedicado à minha avó paterna que viu emigrar meu avô
para o Brasil deixando-a com quatro filhos e nunca mais
voltou, nem deu notícias.

natalia nuno
rosafogo

faz tempo escrevi este poema que guardei para modificar um pouco, mas hoje achei que devia colocá-lo, pois apenas quero fazer-lhe esta homenagem, enquanto também tempo tenho.

será sonho ou obsessão?...



alguém me abriu os braços
o pensamento anda tão vazio
perturbam-me até meus passos
nas paredes do coração, o frio.

afogo-me no tumulto q' me invade
solto a angustia de par em par
visto-me de lembranças e saudade
as minhas asas prontas a quebrar.

alguém me abriu os braços
sonhos de regeneração sem par
em noites longas de cansaços
até que a aurora me venha velar.

até que a manhã seja realidade
deixando à tona d' água a boiar
o resto do sonho e da saudade
que em meu coração veio morar.

abre-se a noite e a luz decai
nada resta, só as lembranças
passa por mim o vento e seu ai
choro, igual aos das crianças.

revivo o que de mim não sai
o coração agrilhoado em mim
a querer viver num vem e vai
num bater louco, sem fim

alguém me abriu os braços
estranho meu mundo ficou
nas noites longas povoou
minha solidão com abraços.

será sonho ou obsessão?

natalia nuno
rosafogo

quinta-feira, 28 de maio de 2020

quando o sonho acontece...



estou nas nuvens ouvindo Chopin, subo montanhas, distancio-me do Mundo, esqueço as encruzilhadas da vida, e fico grata a Deus por me dar o privilégio de ficar por lá até querer, quem sabe esqueça o caminho de regresso...sento-me numa nuvem branca, talvez volte em Maio, num dia lindo, haverão lilazes a rebentar, e eu, irei viver a vida até ás minhas últimas forças...os meus olhos verdes herdados daqueles que me amaram, olharão uma e outra vez o mar, também o sol até desaparecer no horizonte, assim amansarei a saudade, e aligeirarei a minha ânsia...assim vou sonhando embriagada de alegria, este sonho que trago no seio, se não sonhasse como seria?... mas sonhar é bom, quando a vida já vai a mais de meio!

natalia nuno
rosafogo


beija-me...



beija-me como no sonho da juventude
olha-me com a plenitude desse teu olhar
e eu serei o aroma que se esfuma
a labareda ou a queda, a realidade.
ou já só a saudade...
a dor ou doçura, a noite que murmura
a memória duma vida em seu ar distante
onde fui mulher e amante.

o tempo, vai quebrando os laços
vai desfazendo os nossos passos,
vai espiando a ocasião
e nos enlaça numa tranquila solidão.
refugia-se nos meus olhos
um desmesurado amor
enquanto tua boca me entrega
o júbilo aceso duma flor
todo o tempo perdurou em mim
a jovem chama, e a mente incendiada
traz-me tua recordação...
tropeçando e caindo de cansada
ainda assim...teu corpo é meu único destino.
encosto-me a ti agora
para sentir-me viver de novo
sulcam-nos as rugas o rosto, vão-nos silenciando
mas deixo-me a sonhar, nos teus braços estar
teu amor vou até ao fim desejando.

natalia nuno
rosafogo

lá na aldeia...


a aldeia está nesta hora
deserta...
a flor da urze cá fora,
apenas uma ou outra porta aberta
vêem-se as chamas das candeias
dobrando-se às correntes de ar
as mulheres cosendo meias
e cozinhando o jantar.
as chaminés lançam fumo para o céu
a cafeteira sempre ao lume,
cá fora o odor do café,
mistura-se com o perfume
da natureza,
já tudo foi também meu,
lembro meu lugar à mesa.
como resistir a tamanha saudade?
sinto que perdi o tempo
que bruscamente despertou
e fugiu.
a realidade
é que a vida é corrente impetuosa
não é sem dor que se vê passar
é estrada sinuosa
que o tempo inclemente vem sombrear.
é tempo de tranquilidade
as raparigas amarram as tranças
com fitas novas
com cuidado e docilidade.
as mães sopram o carvão em brasa
para engomar a roupa da casa,
breve será o dia de noivado,
que quer casa e, seu recheio
vem o noivo e com cuidado
vem escondendo algum receio
como pode um homem resistir?
o que há-de ser, há-de ser!
já não há como fugir
ela vai ser sua mulher...
prepara-se a boda então
convida-se quem tanto se preza
vem o padre e no  altar faz uma reza
a mãe tira um peso da cabeça
que ele a faça feliz, é bom que não esqueça
lá vão para a lua de mel a morrer d'amor
a vida é água corrente
se um dia fôr diferente?!
há que prever é a realidade,
mas sempre este dia d' amor
será lembrado com saudade.

natália nuno
rosafogo



vivo de sonho


os que não sonham nada sabem

movo-me à volta dum sonho
onde horas solitárias cabem
e já não sei
se vivo de sonho
ou se ele vive de mim
repito cenas eternamente
quase todas vindo de longe, vivas,
trazendo das rosas o carmim.
vão morrendo as pétalas finais
do meu rosto vazio e só
são pássaros os meus ais,
numa árvore adormecida
dança de sombras na poeira
duma memória já sem vida.
hei-de voltar-me para trás
escrever novo poema de amor
e se fôr capaz!?
escrever sobre o presente
o futuro...e o passado que jaz
adormecido.
hei-de voltar em outras primaveras
e sentir o sangue vivo a arder!
para poder amanhã em paz morrer.
bate a chuva nos vidros
persegue-me a sombra da noite
sem luar
não quero meus sonhos cativos
quero amar, quero cantar
queimar de amor minhas palavras
com paixão,
esquecer a noite que é solidão.
sentir o solo, este chão
que é esperança,
alvorada do meu destino
manhã entreaberta
onde sou ainda menina sem tino.
com os pés nas sandálias
por entre jasmins de orvalho.

natalia nuno
rosafogo
poema antigo

a velha porta...



hoje lembrei a velha porta
da casa onde nasci.
toquei-lhe estava fria como morta
mas a abri-la não me atrevi.
escutei o seu ranger
senti que já não havia vida
atrás de si
mas até morrer,
vou lembrar aquela porta fechada.
e a menina das tranças ali sentada.
lembrei dos sonhos esquecidos
ainda moram no meu impetuoso coração
talhados duma tristeza... esmorecidos!
tristeza que me dói na recordação.
recordo o meu refúgio atrás da porta
velha,
lembro sons e reflexos do sol entrando
pela telha.
entravam as estrelas da cor do marfim
eu inventava carícias só para mim.
inventava danças nos caminhos celestes
diante dos meus olhos, anjos com belas vestes.
havia música que ascendia levemente
e eu a escutava com deleite
e sonhava, sonhava docemente
hoje o sonho
submerge quase no esquecimento
e meus olhos embacia.
na quietude da memória está essa
porta, que lembrar me traz alegria.

natalia nuno